9 de agosto de 2006

O mestre de cerimónias - por Charlie

Naquela tarde de Verão, poucas pessoas teriam reparado no seu aspecto polido, nos seus finos modos e nos pequenos tiques que quase se confundiam com a coreografia de gestos tão comuns às cerimónias onde ele pontuava com todo o seu saber e estilo.
Todo o ambiente condizia com ele. Tudo nos lugares, os enfeites das mesas, a decoração primorosa, tudo mas tudo encaixava com o aspecto de requinte que ele transparecia, fazendo-o passar por apenas mais um elemento dum universo perfeito.
Era o mestre de cerimónias mais competente e requisitado de toda a cidade.
Acontecimento que estivesse sob os seus hábeis e dedicados dedos era evento memorável na certa, pela qualidade e desenvoltura no serviço. Pela excelência nos meandros protocolares, pela invulgar postura de homem de sociedade.
Assim, quase passou despercebido o instante em que o padrinho passou junto a ele e lhe fez um sinal discreto, retirando-se para os fundos do imenso salão onde estava a decorrer o copo de água. O mestre ficou impávido e sereno como se de nada se tivesse dado conta.
Deu as suas ordens, arranjou mais uns lugares para os recém-chegados convivas e rapidamente saiu para as traseiras do recinto.
Ali estava ele. O padrinho. Esperava-o nervosamente como se o que fosse dizer lhe queimasse a língua:
- Escute... Eu tenho algo para dizer-lhe...
O mestre não esperou mais. Sem que o padrinho esperasse, atirou-se a ele num abraço quente, de lábios encostados aos dele que assim de repente nem reagiu, apanhado de surpresa.
Num gesto brusco afastou-o e disse-lhe visivelmente alterado:
- O que pensa que está a fazer?! Por quem me toma?!
A compostura foi imediatamente retomada e o mestre, sabedor pelos muitos anos de experiência feita, ouviu o pedido que o padrinho tinha para fazer-lhe, impávido e sereno, como se nada tivesse acontecido. Que precisava dum momento de recato para combinar uma coisa com o noivo, e que não podia ser interrompido por nada deste mundo.
O abanar de cabeça condescendente do mestre deixou-o descansado. Episódio esquecido sem mais memórias.
Tudo decorreu sobre carris, as coisas servidas numa gestão perfeita do tempo, como só o mestre sabia fazer. A música a tocar suavemente temas de gosto esmerado e de cadência a condizer com o leve crescente das emoções, à medida que o etílico ia alargando os círculos e elevando o tom das vozes.
Aproximava-se o momento de partir o bolo, um pé de dança e, daí a pouco, todo o cerimonial estaria terminado. O ambiente estava excelente, como sempre acontecia sob o mando sabedor deste grande mestre.
Foi assim um espanto para todos quando viram entrar pela salão a noiva em pranto, depois de ter saído apressadamente após umas breves palavras ditas ao ouvido por um dos serviçais, que depois se retirou do recinto.
Ela chorava desalmadamente. A mãe de expressão tomada em sofrimento e o pai a fugir para os privados após ter ouvido da sua filha o que ela tinha presenciado.
Quase sem se dar a ver, junto à mesa grande na zona da copa, o mestre servia-se duma taça de champanhe, apreciando, conhecedor como era, como certas coisas só tem o paladar certo se forem servidas frias...

Charlie

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